27 abril 2016

Nas águas de suas próprias pedras

Havia em todas as suas pedras uma pequena marca que parecia um 'V', mas quando se chegava perto e olhava com cuidado, percebia-se que era uma cachoeira e um estreito fio de água descendo pelas pedras de cada pedra. Um dia ela resolveu espalhar todas as suas pedras pelo chão liso e deitar sobre elas. Meditou.

12 fevereiro 2016

Desapareceu seguindo aos gritos por uma das avenidas

Num cruzamento de avenidas um homem de meia idade gritava revoltado, não consegui identificar o motivo de seu revolta, ele estava furioso e chegou a dizer que se tornaria um terrorista. Ele desapareceu seguindo aos gritos por uma das avenidas. Sempre fico sensibilizado com essas manifestações de perda da lucidez, em especial quando elas são expressas por raiva e rancor. Sinto que dentro daquela alma há um desespero, algo muito mais forte grita dentro dela e o que acessamos talvez não represente nem a metade desse desespero interior. Parecem pessoas no final de uma rua sem saída, parece que apenas uma parede opressora se apresenta à frente delas. O desespero interior alheio me faz sentir como se estivesse na sala escura, sem conseguir tatear e acreditar em mais nada, e o ser humano é nitidamente um fantasma que pode aparecer a qualquer momento e iluminar.

10 fevereiro 2016

Ali, o futuro imediato

Consideremos que o futuro imediato será sempre algo muito rápido e que ali se encontram nossos desejos. A vontade e o conjunto de metas parecem uma opressão, mas apenas se pensarmos que o futuro é distante. Por isso me encontro em um flerte com o futuro imediato, onde realmente posso firmar bases para fugir de qualquer tipo de ansiedade. A rapidez que temos nesse futuro imediato nos leva ao desapego, característica que considero fundamental para melhor entendermos nossa passagem por esse mundo. Passou e foi rápido, essa é a lei. Não precisamos nos desvincular dos sentimentos, são eles que nos moldam perante todas as nossas experiências.

08 fevereiro 2016

Firmes posições

Os ventos contrários. A força dos ventos pode ser destruidora, verificar a direção deles e se mover conforme sua disposição é um passo de prudência que todos nós podemos exercer a medida que compreendemos o domínio das forças não progressistas à nossa volta. Parece sempre que uma ética de bom senso deseja suplantar posições bem definidas. Pra mim isso é hipocrisia e desperdício. Os ventos contrários. A destruição é eminente, pode ser atenuada se mantemos firmes nossas posições. Os discursos enganadores são ventanias medíocres sempre na mesma direção dos ventos contrários, enganam como brisas. Ao se refrescarem nessas brisas, os progressistas pouco firmes se deixam enganar e favorecem a destruição dos ventos contrários. Não importa, sempre reconstruiremos a luta, independente dos estragos que ficarem.

06 fevereiro 2016

Dinâmicas que movem

Sempre considerei que as forças mais produtivas estão na solidariedade e compreensão. Apreender essas duas dinâmicas nos faz mover com mais serenidade as coisas do cotidiano e do mundo. Isso ao mesmo tempo nos move para abrir mão de um certo egoísmo em que colocamos nós mesmos e os nosso próximos em um primeiro plano custe o que custar, fato que considero nobre, mas romper esse egoísmo é lançar-se sobre o outro, é exercitar uma verdadeira troca, que no meu entender resulta em conhecimento e aprimoramento de nossas próprias convicções para longe de particularismos, achismos e individualismos, e para próximo de um verdadeiro humanismo.

05 fevereiro 2016

Estranhamento complexo de domínio das próprias forças

Resolvi parar. O objetivo é a centralização no único caminho que está se abrindo, a ilusão de caminhos diversos acabou. Por vezes a sensação é de um idiota completo, mas o que tudo se mostrou foi a iluminação para além do que pode significar qualquer dado material nessa vida. A força descomunal em se fazer compreender, a repressão de se fazer ouvir me consumiu, o cansaço gerou o desanimo. Acabou. No que centralizo agora pode me fazer acreditar que estou num individualismo completo, porém conhecer e estudar as mazelas do individualismo agressivo de nossos tempos me faz ser consciente onde estou centralizando. O estranhamento complexo de domínio das próprias forças, a lucidez de que o abraço amplo limita a proximidade. Um afastamento que aproxima, essa é a sensação, mas não considerarei isso, paradoxo bobo demais. Afastamento, é isso, por ele só.

20 janeiro 2016

Sobe e desce de uma pessoa nela mesma

O elevador está parado no oitavo andar, ela está no sexto. Resolve descer pelas escadas.

Para no quinto. Não pode deixar sua ansiedade lhe consumir.

Depois de cinco minutos o elevador sai do oitavo e obviamente para no sexto.

O elevador demora no andar de cima.

Ela resolve voltar e encontra o elevador ali parado, sem ninguém dentro dele. Ela entra e aperta o T de térreo. Ela não tem carro na garagem.

O elevador desce e para no quinto.

Demora para descer, ela aperta novamente e novamente e novamente o T. Nada.

Ela sai do elevador e desce as escadas apressadamente.

Tropeça no último degrau, bate a cabeça e vai parar no hospital.

O homem ao seu lado na enfermaria levou um tiro na perna e lhe explica os detalhes.

Quando ela volta pra casa resolve subir os seis andares pela escada.

Ao entrar embaixo do chuveiro tem a certeza de que continua sendo a mesma pessoa.

02 agosto 2015

Miriam ou Agnaldo?

"Miriam,
Se havia ali um tremor, suas pernas não sentiam, mas a nebulosidade se fazia nos seus olhos. Como é boa a sensação do fim.
Agnaldo"
(Dedicatória encontrada no livro "Ninguém escreve ao coronel", de Gabriel Garcia Marquez)

A velocidade não é o seu forte, mas sempre acredita no seu próprio tempo, que este é capaz de lhe conduzir pelos melhores caminhos. Agora encontra-se num confuso momento de dúvida: por que abandonar algo precioso?

A praticidade sim é o seu forte. A resposta para a sua dúvida precisa ser direta e objetiva.

Miriam ou Agnaldo?

29 julho 2015

Estréia(s) no Maracanã

Há 44 anos Zico fazia sua estreia como profissional no Maracanã. Lembrei da minha também profissa estreia no Maraca: foi 24 de abril de 94. Mais de 100 mil pessoas no estádio e eu ali, havia ido sozinho. Dê uma olhada no vídeo para compreender o que era o Maraca sem o padrão FIFA (confesso que tenho saudades disso).

Saí de sampa na sexta à noite, cheguei no sábado pela manhã, me hospedei na casa da irmã da madrinha da minha mãe em Copa, fui até a Gávea e comprei meu ingresso.

No dia seguinte, peguei a linha 464 e me juntei à massa. É indescritível o que senti naquele momento quando passei pela estátua do Bellini, pela muvuca, pela catraca, pela muvuca de novo e subi a rampa do Maracanã pela primeira vez.

Fiquei na extinta arquibancada branca e a ansiedade me corroía. Mais de 100 mil pessoas, o jogo tinha todas as emoções, o atacante vascaíno Denner havia acabado de morrer tragicamente, o jogo era decisivo, o Vasco estava invicto.

Meu Mengão venceu de virada, placar igualzinho a estreia do Zico: 2 x 1 e também em cima dos cruzmaltinos.

Em extase, saí do estádio lentamente, tentando gravar cada pedaço dele na mente. Atravessei a rua, peguei o onibus e fui direto pra rodoviária e retornei à sampa.


09 julho 2015

Carta ao companheiro Diogo

(resposta ao companheiro Diogo Leite que havia enviado, via mensagem privada do Facebook, sua preocupação com as arquitetações de golpe à presidenta Dilma que foram divulgadas, ele via "um espectro negativo")

Salve salve Diogo,

Tudo certo por aqui, desculpe a demora na resposta, mas é que a conversa é longa rs rs rs.

Primeiro, não estou na Kinoforum, iniciei o mestrado na Unicamp no ano passado e infelizmente ficaria pesado conciliar, tá meio apertado de grana, mas tô focado aí pra seguir na academia, vamos ver.

Bem, no fundo considero que são apenas estratégias para desestabilizar a imagem e a confiança na Dilma, isso está sendo feito metodicamente desde o Lula, com a Dilma nesse segundo mandato virou uma coisa pro-forma rs rs.

Tenho três considerações sobre essa questão de golpe:

1.
Pesquisando sobre os três últimos golpes na latinoamerica (Venezuela, Nicarágua e Paraguai),  eles tinham uma coisa em comum com o que querem fazer aqui, que é a utilização do legislativo e judiciário para incriminar o governante.

Porém, duas coisas não possuem em comum com o nosso cenário brasileiro:

a)Em nenhum deles o golpe foi anunciado tipo como está sendo feito aqui de formar canhestra, repito, o que acontece aqui é só pra desestabilizar, desde a posse da Dilma.

b)Nos três casos acima eles tiveram apoio de setores econômicos estrangeiros. Aqui é diferente, esses setores estão do nosso lado (sim, temos um governo capitalista! por mais que a oposição queira fazer desse país um rincão comunista e bolivariano). Faz menos de uma semana que a Dilma foi recebida com honras na Google, sem contar o discurso do Obama e a resposta dele pra jornalista da Globo.

2.
Esqueçamos os militares, eles também não possuem apoio externo. Se fizerem algo pra abalar a democracia, não duvido que os EUA interviriam para tirá-los. Sem contar que as declarações dos militares é que isso não está nem um pouco na pauta deles.
Os governos Lula e Dilma valorizaram bem as Forças Armadas, boa parte de obras do PAC são feitas pelos militares, que devem receber uma bolada com isso. Ao contrário do FHC: é que ninguém lembra da insatisfação dos militares naquele governo, que vinha com a postura neoliberal de estado mínimo e sobrou até para os militares, que tiveram seus orçamentos bem reduzidos. Isso tá na História.

3.
PMDB. Os caras estão sendo escorraçados do governo (não era o que todo mundo queria?) Mas é claro, mais do que óbvio, que isso não seria em calmaria. O PMDB está se deteriorando por dentro. Cunha, Temer e Calheiros são três coisas MUITO distintas. O Sarney, que dava uma certa unidade e tinha uma proximidade com o governo muito em função do Lula, aposentou e não quer saber de mais nada, ainda defende a aliança, mas tá virando as costas.
Os caras estão surtando porque o poder deles tá diminuindo.


E qual o preço político para nós?
Aproximação com o PSD, que a Dilma está toda entusiasmada com isso. Não duvido se o Kassab for vice em 2018 na chapa do PT, ou assumir tipo Ministro da Casa Civil.
O PSD tem mais prefeituras que o PMDB. E no ano que vem, nas eleições municipais, eles irão se impor e aí vamos ver.
A Dilma hoje está buscando essa aproximação, pois quer se afastar do PMDB.

Daí que eu falo, a mulher está fazendo três coisas maravilhosas, só que por baixo das cobertas e de forma democrática e constitucional. Ela bate de frente, cozinhando por dentro, revidando a tortura que ela passou, vejamos:

1)PMDB.
É tudo que eu falei acima. Cara, ela está botando fogo na lenha do PMDB,mais abaixo falarei do Cunha.

2)PT Paulista
O PT paulista sempre ditou as regras, agora ela tá mandando todo mundo se fuder, literalmente. O Lula ficou no meio da briga. O PT paulista está insatisfeito, mas foram essas lideranças responsáveis pelo que aconteceu com o partido. E tem mais, em vinte anos não conseguiram derrubar o PSDB, então que moral se tem aqui?
Apenas pra lembrar que o PT na Bahia rompeu com o Carlismo!

3)Combate à corrupção
Cara, o presidente da Odebrecht está preso, isso era para comemorarmos. Essa e outras empreiteiras mamaram sempre, e agora tão na roda.
É muita ingenuidade achar que essas empreiteiras enriqueceram no governo Dilma, vem de longa data a safadeza dessa turma. Agora imagina na época do FHC, com Antonio Carlos Magalhães e Marcos Maciel (filhotes da ditadura) fazendo "articulação" política. Lembro da Andrade Gutierrez nos anos 90 ganhando rios de dinheiro.
Hoje corrupção é um assunto público, é um assunto na pauta, e isso se deve aos mecanismos criados pelo governo federal. DOA A QUEM DOER. E a Dilma intensificou mais isso. A primeira coisa que ela fez em 2011 (em 3 meses de governo) foi demitir da Petrobras esses hoje delatores.

Se essa mulher não entrar pra História, será uma das maiores injustiças já cometidas.


Muita gente reclama que a Dilma e o governo não se manifestam, vejo muitas pessoas cobrando mais pronunciamentos públicos.

Vamos analisar melhor:
Eu considero esse "silêncio" como o que chamamos na política de silêncio estratégico.
Pode ser estranho, mas é necessário.
As merdas do Cunha possuem mais exposição, isso desgasta somente a ele, veja como as pautas da câmara conseguem mobilizar os debates públicos. O Cunha achava que era fácil, mas não é.
E outra, a Dilma não pode "contrariar" as urnas, quer queira quer não, o congresso foi eleito democraticamente.

Doa a quem doer.

E isso é uma coisa que a oposição, muito mais exposta, se desgasta, veja a palhaçada da viagem dos senadores à Venezuela.

Lembremos também que quando a Dilma se expõe, é vaia, é panelaço, por mais que sejam de minorias, mas vai pra mídia como "a voz do povo".
A mídia lança pesquisa de opinião totalmente à revelia, sem debate público.

Novamente, o silêncio estratégico funciona mais.

A exposição do Cunha não fará dele um forte candidato à presidência. A galera tem ojeriza à velha política, ele no fundo é apenas mais um pra maioria da população. Mas essa exposição dele custará caro. Lembrando que o PMDB está ladeira abaixo.

Outra coisa, também otimista. Hoje os setores progressistas (incluindo a esquerda) está no campo de disputa, está no debate. Costumo dizer o seguinte: imagine o meu esforço em 1998 em convencer alguém a votar no Lula, o plano real voando e a galera classe media toda entusiasmada com o dólar 1 pra 1. Ali não havia espaço no campo de disputa, hoje há briga, há uma arena para o confronto. Isso é um avanço democrático e temos que seguir firme, pois a luta nunca é fácil. Para citar exemplo: o Orlando Silva e a Jandira Feghali possuem uma força na câmara que o Aldo Rebelo nos anos 90 não possuía, a briga por espaço pra ele era muito mais árdua.

Democracia é disputa, e é isso que às vezes, por vontade de tranquilidade, muitas pessoas demoram a compreender.

Bem, como te disse, a conversa é longa, tô com a Marieta Severo, e espero que tenhas compreendido as minhas colocações.

forte abraço

(mensagem enviada por Facebook no dia 8 de julho de 2015)

20 dezembro 2014

Dor e nada

As letras estavam turvas e mesmo assim praticou a leitura sobre aquele cartaz sujo na porta de um banheiro mais sujo ainda.

Sem acreditar naquela leitura, ele decidiu usar a imaginação.  Tinha tempo. Pelo menos até um velho homem sair daquele cubículo conhecido como banheiro. 

Um tapete estendido num chão de terra, uma criança aparece e mija em cima desse tapete. O infante sai correndo e some.  O tapete solitariamente embaixo de um sol escaldante convive com o cheiro de um mijo infantil.

Nada.

Ele pensou consigo mesmo: "o cartaz e a turvidade da minha vista me levam a um nada". A bexiga doía. Dor e nada.

Foi por essa noite perdida no tempo que ele a conheceu e dali em diante muitas coisas em sua vida acontecer ele fez.

Sentiu-se longe de todos os nadas.

06 dezembro 2014

Moradores distantes

Havia um terreno baldio na rua em que eles passaram a infância. Era um espaço em que o mato ocupava metade do terreno, na outra metade o chão era de pedras, tipo aquelas ruas de cidades históricas. Eles, Bianca e Juan, moravam no mesmo edifício e cresceram brincando naquele terreno.

Juan, 19 anos, mora sozinho num bairro distante, considera-se focado na vida. Numa tarde ele decide pular o muro desse terreno baldio e ao chegar do outro lado não vê a mínima graça naquilo tudo. Pra que recordar a infância? - diz consigo mesmo. Juan se sente um idiota e resolve sair dali.

Ao pular de volta, o jovem sente sob seus pés as pedras do terreno. Juan está novamente no lugar de onde pulou. Mais uma tentativa e nada, ele continua preso ao espaço de suas brincadeiras de infância com Bianca.

Juan perambula pelo terreno, pula o muro diversas vezes, sempre buscando, além de uma solução, explicação para aquela situação cíclica. Curiosamente, não havia desespero nele, parecia de alguma forma que ele precisava daquilo, mesmo sem admitir pra si mesmo.

Juan deita no mato e adormece.

Bianca?

Também mora distante e toda semana visita seus pais. Ela nunca teve coragem de pular o muro e continua perambulando pelo mundo.

06 outubro 2014

Navegantes - Programa 7

Quando: 11 de outubro de 2014
Onde: Editora FiloCzar - Rua Durval Guerra de Azevedo, 511 Pq. Sto Antonio
Horário: 17h
Para saber mais sobre o Navegantes clique aqui

"Ameaçados", de Júlia Mariano


"ENTRE NÓS, DINHEIRO"
SP / 25 minutos / 2011
Dir: Renan Rovida
Sinopse:  É churrasco de fim de ano na firma, o Bar do Velho Cuba, e o que era para ser uma festa é trabalho para os funcionários. Trabalhando, é possível enriquecer?
Um dia de "festa" na periferia do Capital.


"AMEAÇADOS"
PA / 22 minutos / 2014
Dir: Julia Mariano
Sinopse: No Brasil profundo, onde lei e justiça dependem de nome e sobrenome, a luta pela terra é uma questão de vida ou morte. No sul e sudeste do Pará, pequenos agricultores seguem em seu sonho.

17 julho 2014

Uma pequena tatuagem ao lado de um expressivo 435

Reconhecer firma, era pra isso que eu estava naquele cartório num dia muito quente. No painel eletrônico o número era 415, na minha mão a senha era 442 e na mão dela a senha era 435. Duas cadeiras nos separavam e ela estava olhando para o painel eletrônico quando toquei em seu braço e disse: "Faltam vinte!". Seu olhar pra mim revelou o que devia estar em sua mente: "que cara babaca!". Emendei piorando a cantada: "Faltam vinte pra você fazer quarenta". Ela devia ter no mínimo trinta e sorriu, pensei: "sou foda!". Acho que uns três segundos depois ela se manifestou: "Você é muito ruim nisso!".

Mudei de assunto e perguntei sobre a tatuagem que ela tinha no pulso, um trevo de quatro folhas horrível. Ela disse que fazia tempo que havia feito, tipo uns vinte anos atrás e estampou um sorriso muito maldoso. Mas tudo bem, apesar de acreditar que não é num cartório sem ventiladores que a mulher da sua vida irá aparecer, continuei e quis saber se ela desejava fazer mais tatuagens.

Curiosamente ela se animou em conversar.

Começou a falar um bocado de coisas que obviamente já esqueci e no meio do falatório todo eu disse algo como que acho meio louca a coisa, tipo a pessoa envelhece e a tatuagem não, ou vice versa, a tatuagem envelhece porque pertenceu a um certo momento, a um especifico momento. Aí ela me olhou tão ternamente e comentou:

"Acho que a tatuagem se adapta ao corpo, aí é quando você olha pra tatuagem e lembra porque fez, o dia, a intensidade da dor, a reação das pessoas ao verem o desenho, acho que tudo isso vale e faz com que a tatuagem seja e continue sempre bonita"

Sim, me apaixonei num cartório debaixo de um calor insuportável.

Perguntei que outras tatuagens ela gostaria de fazer, a bela balzaquiana disse "pera!" e começou a dedilhar sobre o celular. Nisso o painel eletrônico acusou 435, ela ouviu o apito do painel, olhou pra ele e correu ao balcão. Fiquei perando e pensei comigo mesmo: "Faltam sete".

12 julho 2014

O Escudo de um Pássaro

Foi num dia chuvoso que descobri o quanto ela admirava as nuvens. Chuvas não lhe agradam e melancólica ela estava naquela tarde quando me deu um beijo carinhoso no rosto após eu contar uma piada sem graça.

Quando o céu está aberto e com muitas nuvens, ela dedica horas para exercitar sua imaginação com as diversas formas que cada nuvem faz ao se mover. Histórias, lendas, batalhas e animais povoam sua mente nesses momentos. É uma riqueza de criações.

Depois da minha péssima atuação como humorista ela me confidenciou sobre essa sua atração com as nuvens e desabafou quase em lágrimas como isso a relaxa e o quanto teme que isso se torne uma espécie de doença. Tentei lhe confortar, mas não levo o mínimo jeito nessas coisas, sempre acho que a pessoa fica pior.

A chuva parou e falei pra ela que poderíamos continuar caminhando para não chegarmos atrasados no curso. Ela me disse que precisava passar no banco, me deu outro beijo carinhoso e nunca mais a vi.

No fundo, eu adoro dias de chuva.

06 junho 2014

Navegantes - Programa 6

Quando: 8 de junho de 2014
Onde: Editora FiloCzar - Rua Durval Guerra de Azevedo, 511 Pq. Sto Antonio
Horário: 17h
Para saber mais sobre o Navegantes clique aqui

"A INVENÇÃO DA INFÂNCIA"
RS / 26 minutos / 2000
Dir: Liliana Sulzbach
Sinopse: Ser criança não significa ter infância.

"O PRESIDENTE DOS ESTADOS UNIDOS"
PE / 23 minutos / 2007
Dir: Camilo Cavalcante
Sinopse:  2003. Pela TV, George Bush declara guerra ao Iraque. No Curado IV, Carlinhos declara guerra à Teresinha. Seria cômico se não fosse trágico.

"A GUERRA DOS GIBIS"
SP / 20 minutos / 2012
Dir: Rafael Terpins, Thiago Mendonça
Sinopse: Nos anos 1960, surge uma criativa produção de quadrinhos eróticos no Brasil. A censura, porém, conspirava para o seu fim. Satã,Chico de Ogum, Maria Erótica e outros personagens se unem aos quadrinistas na batalha contra a ditadura neste documentário onde a pior ficção é a realidade.

27 abril 2014

Assuntos baratos

O latido do cachorro era agudo e parecia que o animal estava na soleira de sua porta, mas não estava. Tudo que ele dizia para si mesmo era que aquele cachorro não existia. O que poderia significar aquele som?

O apartamento era antigo, apertado e situava-se num prédio ao lado de outros prédios numa região maltratada do centro da cidade. Foi a primeira vez que ele ouvia aquele latido e buscou não relacionar com a sua solidão. Repetiu a si mesmo que não passava por nenhuma crise existencial, sua crise era material e isso já bastava.

Naquele dia ele visitaria uma velha senhora e esse assunto do latido agudo lhe seria muito útil. Ele era um enfermeiro fisioterapeuta e sua função junto a essa senhora era seguir uma sequência de exercícios para melhorar a musculatura dela. Porém essa mulher sempre insistia, e insistia muito, digo muito mesmo, para que ele narrasse sobre o seu próprio cotidiano. Ele detestava falar de sua vida e obviamente inventava coisas.

Mas naquele tarde ele não inventaria e o latido agudo de um cão perdido no mundo seria o assunto ideal. E assim ele fez. A velha senhora logo interpretou que latidos em geral são manifestações do inconsciente. Ele apenas balançou a cabeça e concordou. A mulher então falou sobre o dia em que foi mordida por um cachorro.

Quando isso aconteceu ela tinha vinte anos de idade e estava transando com um homem bem mais velho que ela, que não a ajudou, apenas pegou o cachorro e foi embora. Foi uma mordida profunda na coxa esquerda bem próximo ao joelho. Essa mordida ardia e tudo que ela fazia era gritar até que ficou sem voz e ali sentiu o que era a solidão.

Com os olhos fixos no seu enfermeiro, a velha senhora disse:

- Esqueça os seus medos, jamais eles se tornarão um assunto barato escutados através da sua porta.

25 abril 2014

Zoravan

Naquele dia de inverno, o seu banho seria gelado.

O velho chuveiro não conseguia esquentar a água e ela decidiu não postergar o banho pois considerava que o odor do seu corpo trazia algo como agridoce.

Lembrou que esse era o mesmo odor de Netuno, um velho barqueiro que navegava em águas cristalinas de cor esmeralda junto com seu fiel escudeiro, que era um turista empolgado que usava sunga cor lilás.

A primeira e única vez que ela os viu foi quando estava desfrutando uma tarde quente numa praia longe de tudo, bronzeava-se e bebia um coquetel que tinha o cheiro de perfume barato, mas era essencialmente refrescante.

Netuno atracou nessa praia, e assim que desceram do barco, o fiel escudeiro de sunga lilás veio na sua direção e mirava fixamente nas suas pernas, o que a deixou incomodada. Ao se aproximar ele perguntou se ela gostaria de fazer uma viagem com Netuno. A resposta foi seca e imediata: "Não!"

Sem se intimidar, o escudeiro se afastou e rebolando ao som da música que vinha do bar, ele se dirigiu ao balcão para pedir uma cerveja. Logo depois ela percebeu que o próprio Netuno estava sentado ao seu lado.

O velho homem de cabelos e barba cinzas, com pele escura e olhos vivos, pousou sua mão sobre a coxa dela. Era um toque morno e ela sentiu um equilíbrio interior que até hoje ela não sabe explicar. Em seguida Netuno lhe disse:

-Minhas viagens são errantes e se perdem no tempo.

E ali os dois ficaram em silêncio até o sol sumir no mar. Netuno e seu escudeiro embarcaram e sumiram no horizonte assim como a luz daquele dia.

08 março 2014

Piso

O piso era escorradio, ela não conseguia se manter em pé. Até pouco tempo, o seu destino não parecia lhe levar para esta situação sem equilíbrio. Lembrou de toda a sua vida...

Seu nome é Sílvia e um dia ela fez dormir un homem que não dormia há três dias porque tinha medo de dormir e nunca mais acordar. Após cobri-lo com um lençol rasgado, Sílvia desejou que ele morresse...

Ela vivia em função de seus próprios desejos, encontrar a satisfação de cada desejo lhe movia aceleradamente. Sempre foi, de certo modo, um caminho para encontrar seu espaço no mundo.

Sem equilíbrio, ela experimentou pela primeira vez a ocasionalidade das coisas.

Desejos e equilíbrios se entendem? Perguntou a si mesma enquanto seu corpo se direcionava àquele piso...

25 fevereiro 2014

Alheios movimentos

Observei os movimentos dela. Antes de encostar o café nos lábios, ela manipulou o celular com rapidez e precisão. Havia uma mensagem firme ali. Seus olhos estavam concentrados.

Enfim a degustação do café.

Não houve reação, a bebida não incorporou nenhuma diferença significativaa àquele seu momento.

Pelo menos ela colocou pouco adoçante. O sabor do café foi pouco machucado.

Ela tirou da bolsa vermelha dois cartões de visita e os leu com atenção, parecia que precisava decidir algo muito importante. Deixou os cartões em cima da mesa e se distraiu com a conversa dos atendentes no balcão. Seus dedos dedilhavam com força na mesa, consegui escutar de longe. Parecia um tique.

Achei estranho que ela demorava a tocar novamente no celular. Refleti sobre o quanto pode ser bom enviar uma mensagem que não precisa de resposta.

Os seus movimentos não eram tão atraentes, fiquei pensando no que faz me aproximar dos movimentos alheios. Achei fútil que isso seja um exercício para a minha imaginação.

Ela se levantou, foi embora e percebi que os dois cartões de visita haviam ficado sobre a mesa.

Foi aí que notei o quanto a conversa dos atendentes era bem interessante e passei a observar os movimentos deles enquanto saboreava a terceira xícara de café sem adicionar açúcar ou adoçante, obviamente.