27 abril 2014

Assuntos baratos

O latido do cachorro era agudo e parecia que o animal estava na soleira de sua porta, mas não estava. Tudo que ele dizia para si mesmo era que aquele cachorro não existia. O que poderia significar aquele som?

O apartamento era antigo, apertado e situava-se num prédio ao lado de outros prédios numa região maltratada do centro da cidade. Foi a primeira vez que ele ouvia aquele latido e buscou não relacionar com a sua solidão. Repetiu a si mesmo que não passava por nenhuma crise existencial, sua crise era material e isso já bastava.

Naquele dia ele visitaria uma velha senhora e esse assunto do latido agudo lhe seria muito útil. Ele era um enfermeiro fisioterapeuta e sua função junto a essa senhora era seguir uma sequência de exercícios para melhorar a musculatura dela. Porém essa mulher sempre insistia, e insistia muito, digo muito mesmo, para que ele narrasse sobre o seu próprio cotidiano. Ele detestava falar de sua vida e obviamente inventava coisas.

Mas naquele tarde ele não inventaria e o latido agudo de um cão perdido no mundo seria o assunto ideal. E assim ele fez. A velha senhora logo interpretou que latidos em geral são manifestações do inconsciente. Ele apenas balançou a cabeça e concordou. A mulher então falou sobre o dia em que foi mordida por um cachorro.

Quando isso aconteceu ela tinha vinte anos de idade e estava transando com um homem bem mais velho que ela, que não a ajudou, apenas pegou o cachorro e foi embora. Foi uma mordida profunda na coxa esquerda bem próximo ao joelho. Essa mordida ardia e tudo que ela fazia era gritar até que ficou sem voz e ali sentiu o que era a solidão.

Com os olhos fixos no seu enfermeiro, a velha senhora disse:

- Esqueça os seus medos, jamais eles se tornarão um assunto barato escutados através da sua porta.

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