05 dezembro 2009

Londrina, meia-noite

Estava no banco ao fundo do ônibus, desceria no metrô Clínicas e do lado de fora, após uma gigantesca nuvem negra cobrir o céu paulistano, despencava uma torrencial chuva que não somente iria fazer a metrópole parar com engarrafamentos colossais como também deixaria um saldo de 6 mortos nas manchetes dos jornais do dia seguinte.

Meu destino: A Rosa Púrpura do Cairo, de Woody Allen, com projeção em 35mm no CCBB.

Desci do ônibus numa parada próxima à entrada do metrô. Apertado entre outros cidadãos que esperavam seus coletivos divaguei se corria ou não à estação. O relógio do celular me informou que eu deveria correr.

Corri.

Resultado: Encharcado.

Naveguei pelos túneis do metropolitano com a camisa grudada no corpo, mas com a certeza de que em minutos estaria frente a frente com um dos meus top 5 de Allen. Desembarquei no metrô São Bento e com um guarda-chuva de cinco reais comprado ali mesmo, percorri as calçadas do centro de São Paulo e com a úmida roupa me sentei na poltrona do cinema. A sessão atrasara e o meu atraso não me fez perder nenhum fotograma.

A Rosa Púpura do Cairo tem pra mim um valor sentimental muito forte por dois motivos, o primeiro pela sua esplêndida valorização dessa relação do cinema com nossos imaginários, a imersão em mundos que nos completam de certa forma. Quando criança, por tantas vezes desejei que a princesa Leia saisse das telas para os meus braços e por outras tantas desejei que eu entrasse na tela para ser um jedi nos braços dela. Woody Allen soube com maestria traduzir tudo isso. O segundo motivo tem a ver com Sigourney Weaver, mas aí o relato será num texto em breve, visite sempre o Tyler Durden Fora do Caos.

Assistir ao filme pela primeira vez em película me fez perceber algo muito interessante, as cenas em preto e branco que se referem ao filme do personagem rebelde são extremamente vivas, um nítido contraponto à realidade marrom e escura da protagonista chamada Cecília (Mia Farrow). É uma luz que talvez nosso mundo real não consegue apreender. É poeticamente rica a cena final em que Cecília ressuscita seus ânimos com essa luz que vem da tela.

Guarda-chuva aberto, cidade parada, e caminhei até minha casa atravessando a Sé e o bairro da Liberdade refletindo sobre o filme e outras coisas, foi bem agradável.

Deixei a mochila em casa e resolvi também deixar o guarda-chuva, parti para mais uma missão cinematográfica e novamente molhei a camisa no trajeto até o metrô.

Cheguei sem muitos problemas na abertura da Retrospectiva do Cinema Brasileiro no CineSESC e assisti ao doc Crítico, de Kleber Mendonça Filho. Bons depoimentos, edição eficiente e o filme traz uma curiosa investigação em torno do universo de crítica cinematográfica.

Foi um dia de caos urbano em São Paulo e fui dormir com vários pensamentos, busquei reuni-los no que costumo expressar como experiência cinematográfica. A sala escura e a luz rebatida te envolvem de um tal modo que a duração de um filme é o espaço dessa experiência única de absorver um universo que não nos pertence e que conseguimos, na maioria das vezes, digerir toda sua lógica. E o resultado obviamente depende de cada um.

O filme de Kleber apresenta isso através do que é possível produzir com reflexões e opiniões em torno de um filme e suas possíveis conseqüências, enquanto Woody Allen me mostrou o poder da luz revigorando uma Cecília imersa num poço de frustrações.

Dia seguinte. Londrina, meia noite.

Dentro da programação da Mostra Londrina de Cinema um filme surpresa, Death Proof, de Quentin Tarantino.

A medida que o filme avançava, a minha sensação era de vivenciar uma epifania, o cinema parecia estar se reinventando, mas não estava, dessa vez não eram as águas das nuvens de São Paulo que me encharcavam, eu estava mergulhado num mar de possibilidades para o meu imaginário, aquela frágil Cecília não é parte de uma ficção, ela existe, e o cinema se revela não mais como limite de nossas inundadas realidades, ele rompe todas as fronteiras, amplia o possível.

Não somente os dublês estão à prova da morte.

Um comentário:

Angela Magos disse...

Se todos os dias chuvosos de São Paulo fossem assim, desejaria um ano inteiro de chuva, rs.