28 junho 2010

Herdeiro de escombros manauaras

Faz pouco mais de uma semana que terminei de ler o livo "Cinzas do Norte", de Milton Hatoum e somente agora tomei fôlego para iniciar uma nova leitura, o romance de Tolstoi chamado "A Sonata a Kreutzer".

Eu disse fôlego porque desde "O Lobo da Estepe", de Herman Hesse, um livro não me tocava tão profudamente quanto esse do Hatoum. A Manaus descrita ao longo das páginas me parecia tão próxima, apesar de que o livro termina exatamente quando eu comecei a ter a percepção do mundo ao redor, no início da minha infância. A sensação que me causou foi que herdei os escombros de uma cidade que foi definhando junto com o seu acelerado desenvolvimento. Foi uma sensação estranha, sem dúvida.

Quando eu era criança, no início dos anos 80, a cidade de Manaus quase parecia um lugar sem passado, se não fosse pelas histórias que minha mãe e minha vó me contavam, ou pelo que descobríamos a respeito da época da borracha, Manaus parecia estar começando do zero. Nesse período, a cidade não era nenhum exemplo de modernidade, mas através da Zona Franca e do seu extenso parque industrial, estava antenada com a tecnologia e as informações do mundo. Lembro que era uma época de esperanças.

Mas ao ler o livro de Hatoum, hoje enxergo que eram falsas esperanças, vivíamos nos escombros de um passado recente. A demolição do Cine Guarany em 1984 para a construção de um banco em formato de caixote simbolizou a limpeza completa desses escombros. Um tiro de misericórdia à memória da cidade. Ali Manaus e sua história capitulavam tal qual o trágico fim do personagem Mundo de "Cinzas do Norte".

Sem a consciência do próprio passado, acredito que não há espaço para esperanças, abre-se uma clareira para o aventureiro mais atroz, aquele sem vínculos com a própria cultura, e também para o forasteiro sem compromissos com a preservação mínima de uma terra que ele deseja dominar para prevalecer seu sucesso pessoal e financeiro. Assim enxergo a Manaus que herdei, onde morei até os 17 anos e visito quase todos os anos.

A luta de Mundo por sua arte e sua liberdade foi a batalha que a memória de Manaus não venceu. A derrota se disfarçou de progresso e riquezas, que realmente vieram, mas não mostraram nenhum humanismo e respeito ao mais simples: sensibilidade e identificação com o próprio chão que está cravado no coração da Amazônia.

(Sugestão de leitura: http://catadordepapeis.blogspot.com)

Um comentário:

eu vim para confundir e nao para explicar disse...

Muito forte seu depoimento, ou melhor sua declaração de amor e de tristeza à sua cidade natal. Amor por um lugar que formou sua identidade e tristeza por ver essa identidade da cidade se perder (com isso, um pouco de vc), se desfalecer com o tempo e o cruel e falso "desenvolvimento", que nada somou à cidade, só fez com que seus cidadão , os que amaram um dia a cidade se perdessem dentro da suas proprias identidades, abrindo caminho para o vazio do sentimento, e com isso, a tristeza se isntalou nos seus corações, ao ver sua cidade ser dominada pelo descaso e o superficial de um novo presente, que nada preserva e só destroi.